Cumpre dizer, antes de tudo, que o Trovadorismo se
manifestou na Idade Média, período este que teve início com o fim do
Império Romano (destruído no século V com a invasão dos bárbaros vindos
do norte da Europa), e se estendeu até o século XV, quando se deu a
época do Renascimento. Nesse sentido, o artigo ora em questão tem por
finalidade abordar acerca do contexto histórico-social, cultural e
artístico que tanto demarcou este importante período da arte literária.
No que diz respeito ao aspecto econômico, toda a Europa dessa época
sofria com as sucessivas invasões dos povos germânicos, fato este que
culminava em inúmeras guerras. Nessa conjuntura desenvolveu-se o sistema
econômico denominado de feudalismo, no qual o direito de governar se
concentrava somente nas mãos do senhor feudal, o qual mantinha plenos
poderes sobre todos os seus servos e vassalos que trabalhavam em suas
terras. Este senhor, também chamado de suserano, cedia a posse de terras
a um vassalo, que se comprometia a cultivá-las, repassando, assim,
parte da produção ao dono do feudo. Em troca dessa fidelidade e
trabalho, os servos contavam com a proteção militar e judicial, no caso
de possíveis ataques e invasões. A essa relação subordinada dava-se o
nome de vassalagem.
Quanto ao contexto cultural e artístico, podemos afirmar que toda a
Idade Média foi fortemente influenciada pela Igreja, a qual detinha o
poder político e econômico, mantendo-se acima até de toda a nobreza
feudal. Nesse ínterim, figurava uma visão de mundo baseada tão somente
no teocentrismo, cuja ideologia afirmava que Deus era o centro de todas
as coisas. Assim, o homem mantinha-se totalmente crédulo e religioso,
cujos posicionamentos estavam sempre à mercê da vontade divina, assim
como todos os fenômenos naturais.
Na arquitetura, toda a produção artística esteve voltada para a
construção de igrejas, mosteiros, abadias e catedrais, tanto na Alta
Idade Média, na qual predominou o estilo romântico, quanto na Baixa
Idade Média, predominando o estilo gótico. No que tange às produções
literárias, todas elas eram feitas em galego-português, denominadas de
cantigas.
No intuito de retratar a vida aristocrática nas cortes portuguesas,
as cantigas receberam influência de um tipo de poesia originário da
Provença – região sul da França, daí o nome de poesia provençal –, como
também da poesia popular, ligada à música e à dança. No que tange à
temática elas estavam relacionadas a determinados valores culturais e a
certos tipos de comportamento difundidos pela cavalaria feudal, que até
então lutava nas Cruzadas no intuito de resgatar a Terra Santa do
domínio dos mouros. Percebe-se, portanto, que nas cantigas prevaleciam
distintos propósitos: havia aquelas em que se manifestavam juras de amor
feitas à mulher do cavaleiro, outras em que predominava o sofrimento de
amor da jovem em razão de o namorado ter partido para as Cruzadas, e
ainda outras, em que a intenção era descrever, de forma irônica, os
costumes da sociedade portuguesa, então vigente. Assim, em virtude do
aspecto que apresentavam, as cantigas se subdividiam em:
CANTIGAS LÍRICAS DE AMOR
DE AMIGO
CANTIGAS SATÍRICAS DE ESCÁRNIO
DE MALDIZER
Cantigas de amor
O sentimento oriundo da submissão entre o servo e o senhor feudal
transformou-se no que chamamos de vassalagem amorosa, preconizando,
assim, um amor cortês. O amante vive sempre em estado de sofrimento,
também chamado de coita, visto que não é correspondido. Ainda assim
dedica à mulher amada (senhor) fidelidade, respeito e submissão. Nesse
cenário, a mulher é tida como um ser inatingível, à qual o cavaleiro
deseja servir como vassalo. A título de ilustração, observemos, pois, um
exemplo:
Cantiga da Ribeirinha
No mundo non me sei parelha,
entre me for como me vai,
Cá já moiro por vós, e - ai!
Mia senhor branca e vermelha.
Queredes que vos retraya
Quando vos eu vi em saya!
Mau dia me levantei,
Que vos enton non vi fea!
E, mia senhor, desdaqueldi, ai!
Me foi a mi mui mal,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
Dhaver eu por vós guarvaia,
Pois eu, mia senhor, dalfaia
Nunca de vós houve nem hei
Valia dua correa.
Paio Soares de Taveirós
Vocabulário:
Nom me sei parelha: não conheço ninguém igual a mim.
Mentre: enquanto.
Ca: pois.
Branca e vermelha: a cor branca da pele, contrastando com o vermelho do rosto, rosada.
Retraya: descreva, pinte, retrate.
En saya: na intimidade; sem manto.
Que: pois.
Des: desde.
Semelha: parece.
D’haver eu por vós: que eu vos cubra.
Guarvaya: manto vermelho que geralmente é usado pela nobreza.
Alfaya: presente.
Valia d’ua correa: objeto de pequeno valor.
Cantigas de amigo
Surgidas na própria Península Ibérica, as cantigas de amigo eram
inspiradas em cantigas populares, fato que as concebe como sendo mais
ricas e mais variadas no que diz respeito à temática e à forma, além de
serem mais antigas. Diferentemente da cantiga de amor, na qual o
sentimento expresso é masculino, a cantiga de amigo é expressa em uma
voz feminina, embora seja de autoria masculina, em virtude de que
naquela época às mulheres não era concedido o direito de alfabetização.
Tais cantigas tinham como cenário a vida campesina ou nas aldeias, e
geralmente exprimiam o sofrimento da mulher separada de seu amado
(também chamado de amigo), vivendo sempre ausente em virtude de guerras
ou viagens inexplicadas. O eu lírico, materializado pela voz feminina,
sempre tinha um confidente com o qual compartilhava seus sentimentos,
representado pela figura da mãe, amigas ou os próprios elementos da
natureza, tais como pássaros, fontes, árvores ou o mar. Constatemos um
exemplo:
Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?
(...)
D. Dinis
Cantigas satíricas
De origem popular, essas cantigas retratavam uma temática originária
de assuntos proferidos nas ruas, praças e feiras. Tendo como suporte o
mundo boêmio e marginal dos jograis, fidalgos, bailarinas, artistas da
corte, aos quais se misturavam até mesmo reis e religiosos, tinham por
finalidade retratar os usos e costumes da época por meio de uma crítica
mordaz. Assim, havia duas categorias: a de escárnio e a de maldizer.
Apesar de a diferença entre ambas ser sutil, as cantigas de escárnio
eram aquelas em que a crítica não era feita de forma direta. Rebuscadas
de uma linguagem conotativa, não indicavam o nome da pessoa satirizada.
Verifiquemos:
Ai, dona fea, foste-vos queixar
que vos nunca louv[o] em meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!...
João Garcia de Guilhade
Nas cantigas de maldizer, como bem nos retrata o nome, a crítica era
feita de maneira direta, e mencionava o nome da pessoa satirizada.
Assim, envolvidas por uma linguagem chula, destacavam-se palavrões,
geralmente envoltos por um tom de obscenidade, fazendo referência a
situações relacionadas a adultério, prostituição, imoralidade dos
padres, entre outros aspectos. Vejamos, pois:
Roi queimado morreu con amor
Em seus cantares por Sancta Maria
por ua dona que gran bem queria
e por se meter por mais trovador
porque lhela non quis [o] benfazer
fez-sel en seus cantares morrer
mas ressurgiu depois ao tercer dia!...
Pero Garcia Burgalês
Cumpre dizer, antes de tudo, que o Trovadorismo se
manifestou na Idade Média, período este que teve início com o fim do
Império Romano (destruído no século V com a invasão dos bárbaros vindos
do norte da Europa), e se estendeu até o século XV, quando se deu a
época do Renascimento. Nesse sentido, o artigo ora em questão tem por
finalidade abordar acerca do contexto histórico-social, cultural e
artístico que tanto demarcou este importante período da arte literária.
No que diz respeito ao aspecto econômico, toda a Europa dessa época
sofria com as sucessivas invasões dos povos germânicos, fato este que
culminava em inúmeras guerras. Nessa conjuntura desenvolveu-se o sistema
econômico denominado de feudalismo, no qual o direito de governar se
concentrava somente nas mãos do senhor feudal, o qual mantinha plenos
poderes sobre todos os seus servos e vassalos que trabalhavam em suas
terras. Este senhor, também chamado de suserano, cedia a posse de terras
a um vassalo, que se comprometia a cultivá-las, repassando, assim,
parte da produção ao dono do feudo. Em troca dessa fidelidade e
trabalho, os servos contavam com a proteção militar e judicial, no caso
de possíveis ataques e invasões. A essa relação subordinada dava-se o
nome de vassalagem.
Quanto ao contexto cultural e artístico, podemos afirmar que toda a
Idade Média foi fortemente influenciada pela Igreja, a qual detinha o
poder político e econômico, mantendo-se acima até de toda a nobreza
feudal. Nesse ínterim, figurava uma visão de mundo baseada tão somente
no teocentrismo, cuja ideologia afirmava que Deus era o centro de todas
as coisas. Assim, o homem mantinha-se totalmente crédulo e religioso,
cujos posicionamentos estavam sempre à mercê da vontade divina, assim
como todos os fenômenos naturais.
Na arquitetura, toda a produção artística esteve voltada para a
construção de igrejas, mosteiros, abadias e catedrais, tanto na Alta
Idade Média, na qual predominou o estilo romântico, quanto na Baixa
Idade Média, predominando o estilo gótico. No que tange às produções
literárias, todas elas eram feitas em galego-português, denominadas de
cantigas.
No intuito de retratar a vida aristocrática nas cortes portuguesas,
as cantigas receberam influência de um tipo de poesia originário da
Provença – região sul da França, daí o nome de poesia provençal –, como
também da poesia popular, ligada à música e à dança. No que tange à
temática elas estavam relacionadas a determinados valores culturais e a
certos tipos de comportamento difundidos pela cavalaria feudal, que até
então lutava nas Cruzadas no intuito de resgatar a Terra Santa do
domínio dos mouros. Percebe-se, portanto, que nas cantigas prevaleciam
distintos propósitos: havia aquelas em que se manifestavam juras de amor
feitas à mulher do cavaleiro, outras em que predominava o sofrimento de
amor da jovem em razão de o namorado ter partido para as Cruzadas, e
ainda outras, em que a intenção era descrever, de forma irônica, os
costumes da sociedade portuguesa, então vigente. Assim, em virtude do
aspecto que apresentavam, as cantigas se subdividiam em:
CANTIGAS LÍRICAS DE AMOR
DE AMIGO
CANTIGAS SATÍRICAS DE ESCÁRNIO
DE MALDIZER
Cantigas de amor
O sentimento oriundo da submissão entre o servo e o senhor feudal
transformou-se no que chamamos de vassalagem amorosa, preconizando,
assim, um amor cortês. O amante vive sempre em estado de sofrimento,
também chamado de coita, visto que não é correspondido. Ainda assim
dedica à mulher amada (senhor) fidelidade, respeito e submissão. Nesse
cenário, a mulher é tida como um ser inatingível, à qual o cavaleiro
deseja servir como vassalo. A título de ilustração, observemos, pois, um
exemplo:
Cantiga da Ribeirinha
No mundo non me sei parelha,
entre me for como me vai,
Cá já moiro por vós, e - ai!
Mia senhor branca e vermelha.
Queredes que vos retraya
Quando vos eu vi em saya!
Mau dia me levantei,
Que vos enton non vi fea!
E, mia senhor, desdaqueldi, ai!
Me foi a mi mui mal,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
Dhaver eu por vós guarvaia,
Pois eu, mia senhor, dalfaia
Nunca de vós houve nem hei
Valia dua correa.
Paio Soares de Taveirós
Vocabulário:
Nom me sei parelha: não conheço ninguém igual a mim.
Mentre: enquanto.
Ca: pois.
Branca e vermelha: a cor branca da pele, contrastando com o vermelho do rosto, rosada.
Retraya: descreva, pinte, retrate.
En saya: na intimidade; sem manto.
Que: pois.
Des: desde.
Semelha: parece.
D’haver eu por vós: que eu vos cubra.
Guarvaya: manto vermelho que geralmente é usado pela nobreza.
Alfaya: presente.
Valia d’ua correa: objeto de pequeno valor.
Cantigas de amigo
Surgidas na própria Península Ibérica, as cantigas de amigo eram
inspiradas em cantigas populares, fato que as concebe como sendo mais
ricas e mais variadas no que diz respeito à temática e à forma, além de
serem mais antigas. Diferentemente da cantiga de amor, na qual o
sentimento expresso é masculino, a cantiga de amigo é expressa em uma
voz feminina, embora seja de autoria masculina, em virtude de que
naquela época às mulheres não era concedido o direito de alfabetização.
Tais cantigas tinham como cenário a vida campesina ou nas aldeias, e
geralmente exprimiam o sofrimento da mulher separada de seu amado
(também chamado de amigo), vivendo sempre ausente em virtude de guerras
ou viagens inexplicadas. O eu lírico, materializado pela voz feminina,
sempre tinha um confidente com o qual compartilhava seus sentimentos,
representado pela figura da mãe, amigas ou os próprios elementos da
natureza, tais como pássaros, fontes, árvores ou o mar. Constatemos um
exemplo:
Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?
(...)
D. Dinis
Cantigas satíricas
De origem popular, essas cantigas retratavam uma temática originária
de assuntos proferidos nas ruas, praças e feiras. Tendo como suporte o
mundo boêmio e marginal dos jograis, fidalgos, bailarinas, artistas da
corte, aos quais se misturavam até mesmo reis e religiosos, tinham por
finalidade retratar os usos e costumes da época por meio de uma crítica
mordaz. Assim, havia duas categorias: a de escárnio e a de maldizer.
Apesar de a diferença entre ambas ser sutil, as cantigas de escárnio
eram aquelas em que a crítica não era feita de forma direta. Rebuscadas
de uma linguagem conotativa, não indicavam o nome da pessoa satirizada.
Verifiquemos:
Ai, dona fea, foste-vos queixar
que vos nunca louv[o] em meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!...
João Garcia de Guilhade
Nas cantigas de maldizer, como bem nos retrata o nome, a crítica era
feita de maneira direta, e mencionava o nome da pessoa satirizada.
Assim, envolvidas por uma linguagem chula, destacavam-se palavrões,
geralmente envoltos por um tom de obscenidade, fazendo referência a
situações relacionadas a adultério, prostituição, imoralidade dos
padres, entre outros aspectos. Vejamos, pois:
Roi queimado morreu con amor
Em seus cantares por Sancta Maria
por ua dona que gran bem queria
e por se meter por mais trovador
porque lhela non quis [o] benfazer
fez-sel en seus cantares morrer
mas ressurgiu depois ao tercer dia!...
Pero Garcia Burgalêsv